HORROR EXPOSTO - Virgínia, a Doutora Morte: nos depoimentos de testemunhas, os detalhes do esquema montado para "girar leitos" tirando a vida dos doentes (Rodrigo Felix Leal/AFP)
Crime
Mortes na UTI: prontuários registram aplicação de medicamentos após o horário do óbito
Polícia Técnica e Ministério Público descobrem cinco casos de mortes suspeitas com desencontros nos registros feitos pela equipe médica
Leslie Leitão, de Curitiba
s prontuários dde alguns dos pacientes mortos na UTI Geral do Hospital Evangélico de Curitiba trazem fortes indícios de irregularidades cometidas pela médica Virgínia Souza e outros integrantes da equipe sob suspeita de mortes na unidade. Em pelo menos três dos óbitos investigados pela polícia, os registros de horários de aplicação de medicamentos é posterior ao da morte do paciente. Como não há razão para crer que os médicos e enfermeiros ministravam substâncias após o óbito, a suspeita é de que os intensivistas simplesmente tenham lançado de forma atabalhoada as informações nos prontuários. Um dos casos suspeitos data de 5 de dezembro de 2012. O prontuário registra que, no 16º dia de internação após complicações durante uma cesariana, a paciente L.A.S, de 35 anos, recebeu aplicações de Dormonid (1 ampola de 15mg), Fentanil (1 frasco de 10ml) e Pavulon (2 ampolas de 2ml) às 9h46. O registro eletrônico do prontuário, entretanto, indica que sua morte ocorreu seis minutos antes, exatamente às 9h40. Detalhe: o prontuário em questão, de número 3495240, não traz qualquer indicação terapêutica desses medicamentos.Outros dois casos descobertos pelos auditores aconteceram no mesmo em 14 de dezembro do ano passado e, novamente, em ambos a comissão de analistas não encontrou qualquer indicação terapêutica que justificasse o uso dos medicamentos ao paciente naquele momento. O primeiro a morrer foi o aposentado de 85 anos A.A.P, que estava internado na UTI havia três dias, com insuficiência respiratória. A mistura dos mesmos três medicamentos foi prescrita e aplicada às 14h55. Na folha do paciente, entretanto, consta que seu óbito ocorreu às 14h50. Menos de meia hora depois, o filme se repetiu. A vítima, desta vez, foi um homem, W.S.A, de 51 anos, internado oito dias antes após ser intoxicado por chumbinho – substância usada para matar ratos.. A mesma combinação de remédios (apelidada pelos próprios funcionários do hospital de “Kit Morte”) está registrada às 15h21, enquanto seu óbito ocorreu às 15h20. “São coisas difíceis de entender. Vamos dizer que esses registros foram feitos depois de uma eventual tentativa de socorrer o paciente. Ninguém vai deixar de tentar reanimar alguém para fazer um registro no prontuário, claro. Mas não faz sentido os horários estarem errados”, argumenta a promotora Fernanda Nagl Garcez, da Promotoria de Proteção à Saúde Pública de Curitiba.
A conclusão do relatório da Polícia Técnica do Paraná indica que 317 dos 346 pacientes que receberam aplicações prescritas pela médica Virgínia Souza morreram algumas horas depois, como mostrou reportagem de VEJA desta semana. Além dos sete casos que resultaram em denúncia, o Ministério Público também já separou outros 21 casos, descobertos por uma auditoria de médicos com representantes do Ministério da Saúde.
Para os investigadores, os horários desencontrados nos prontuários indicam que os acusados tinham certeza da impunidade. As denúncias que deram origem ao trabalho da polícia - desencadeando na operação realizada em fevereiro passado - começaram em 6 de março de 2012. Uma fisioterapeuta da unidade, indignada, passou a ligar sistematicamente para o telefone da Ouvidoria Geral do Paraná, relatando casos de mortes no Hospital Evangélico, onde funciona o principal pronto socorro de Curitiba. Ela relatava datas e casos específicos de pacientes que tiveram a morte antecipada dentro da UTI Geral.
Um desses casos a polícia conseguiu incluir na primeira denúncia já entregue ao juiz do Tribunal de Júri de Curitiba: Aírton Ramos dos Santos, de 40 anos, havia dado entrada com lesões graves em virtude de uma queimadura de terceiro grau, com lesão pulmonar. Seu quadro inspirava cuidados, mas com a ajuda dos 60% de oxigênio de ventilação mecânica, registrados em seu prontuário, até a manhã daquele dia 3 de março ele lutava pela vida. O coquetel de Pavulon, Fentanil e Ketalar, prescrito por Virgínia às 10h06, porém, sentenciou sua morte. De acordo com uma das testemunhas, o nível de oxigênio foi diminuído para 21% e, exatamente às 10h30, Aírton morreu.
O procedimento era padrão e está relatado em vários depoimentos obtidos por VEJA. Os medicamentos prescritos, que eram usados para dar o ponto final na vida dos pacientes são, de fato, utilizados com frequência em qualquer UTI. A questão está na mistura dessas substâncias com o rebaixamento dos parâmetros ventilatórios. Ou seja: remédios e menos oxigênio significavam mais um leito vago para o hospital lucrar com a chegada de um novo paciente. Encontrar provas disso é um desafio para a polícia. Quando as investigações se desenrolaram, tentou-se até infiltrar um policial formado em enfermagem na unidade, mas a ideia não foi adiante, pois o agente poderia acabar se tornando cúmplice de assassinatos. No início de janeiro, os 15 dias de escutas telefônicas, autorizadas pela Justiça, produziram a prova que faltava. Em pelo menos dois momentos, Virgínia foi flagrada passando ordens para que se diminuísse o oxigênio do paciente.
O prontuário de R.S.F indica que às 12h30 Virgínia registrou o termo “evolução de óbito esperado”. Em seguida, às 13h35, o enfermeiro Claudinei Machado Nunes marcou o horário do óbito: 14h55. "Quase duas horas antes, eles profetizaram que o paciente iria morrer naquele horário", diz um integrante da auditoria que vem auxiliando o MP. Segundo consta no sistema eletrônico da UTI, as doses de Diprivan e Pavulon foram aplicadas às 14h46. Nove minutos mais tarde, pontualmente às 14h55, o óbito foi declarado.
A montagem do quebra-cabeça das mortes antecipadas só foi possível a partir dos depoimentos de ex-funcionários que presenciaram os crimes. "Tínhamos os óbitos, os indícios revelados através da análise dos prontuários, mas nem todos registravam a diminuição do oxigênio. Muitas vezes essa diminuição não era anotada, ou seja, manipulavam o prontuário. Então, precisávamos compor um caso com uma testemunha que tivesse visto a diminuição dos parâmetros", explica a promotora.
A maquiagem na quantidade de oxigênio, entretanto, nem sempre foi bem feita. Dentre os 21 novos casos que estão sendo investigados, dois são flagrantes, mas o principal deles refere-se ao prontuário 978427, de um homem identificado como A.R., de 57 anos. Em 23 de outubro ele deu entrada com um Acidente Vascular Cerebral. Três dias mais tarde, a medição registrada no balanço hídrico, apreendido pela polícia, mostra que às 18h e às 20h, sua frequência respiratória mantinha-se em 13 e a concentração de oxigênio em 60%. Às 22 horas, registrou-se a diminuição para apenas 5 de frequência e 21% de ar. Oito minutos mais tarde dessa diminuição dos parâmetros do aparelho respiratório, o paciente recebeu duas ampolas de Diprivan e mais três de Pavulon. Exatamente às 22h25, o óbito foi decretado. "Isso é confissão de assassinato", afirma a promotora Fernanda Nagl, para quem as decisões tomadas pela equipe foram deliberadamente no sentido de encerrar a vida do paciente.
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